ALTERIDADE

Banksy

“Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro”.

Mia Couto em "O fio das missangas".

O primeiro questionamento que me surgiu foi: Por que falar de alteridade? No momento seguinte me perguntei: Como não falar de alteridade? Talvez esse trabalho tivesse que começar falando sobre alteridade. No entanto, foi preciso (re)construir o percurso para entender o tamanho e a importância deste conceito no percurso, na tessitura. Assim como nas palavras de Mia Couto, fui sendo inundada por essa palavra, pelo que se quer fazer entender com essa palavra.

Alteridade pode ser entendida, de modo resumido, em estado dicionário, como a condição de ser um outro, ou então, um “Estado, qualidades daquilo que é outro, distinto (antônimo de Identidade)''. Conceito da filosofia e psicologia: relação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu)."* No entanto, ao pesquisar mais profundamente sobre a concepção de Alteridade me deparei com os enunciados de Bakhtin (1934); que são para este trabalho fio condutor. Sendo assim, os fios que estavam construindo meu tecido me levaram novamente a dialogar com o autor. Para ele, o ser se reflete no outro, refrata-se, ou seja, o indivíduo se constitui e também se altera, constantemente, em interação com e a partir do outro. A alteridade é fundante no ser humano, pois o outro é imprescindível para sua constituição. Nas palavras do autor, "Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade."

Levinas (1908 - 1982), afirma que a ética é vista como busca do sentido do humano a partir da alteridade, do rosto do outro. Para o autor, nossa subjetividade se constrói na ideia de “ser a serviço do outro” para poder “ser com o outro”, entendendo que sua fala não significa submissão, mas cuidado e acolhimento a partir da convocação do outro. Para o filósofo, a ética se realiza na interação face a face, com o rosto, não como estética, não como conhecimento, nem necessidade, mas sim, de um desejo, pois, para ele, a ideia de infinito está contida no rosto do outro. Em suas palavras: “Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto. (…) Desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. É uma responsabilidade que vai além do que faço.” (LÉVINAS, 1982, p.87).

Encontro

Rio de Janeiro, 2015

No ano de 2015 fazia pesquisa de doutorado e fui observar um menino de 10 anos com TEA em sala de aula...

Eu havia falado para T (o menino), que iria encontrá-lo na escola em que ele fazia acompanhamento no contraturno do ensino regular. No dia combinado cheguei um pouco antes para conversar com a professora que o acompanhava, ela me relatou como era o trabalho e sobre as crianças que frequentavam a sala de multirrecursos. Eram 3 crianças que frequentavam o espaço naquele horário. A professora me falou sobre T como sendo um menino esperto e que basicamente tinha que acompanhá-lo nas tarefas de casa. Ela fez questão de me entregar o laudo do médico do diagnóstico do TEA: constava que na infância ele tinha, segundo a mãe, sensibilidade auditiva, que ficava muito reativo quando ouvia barulho alto.

Quando T chegou à porta da sala e me viu, sorriu, demonstrando ter ficado contente em me ver, logo se aproximou e disse: “hoje é terça–feira”, referindo-se ao fato de que havíamos combinado esse dia. Minha impressão foi a de que ele percebia a importância, de minha parte, de estar ali conforme combinado anteriormente. Eu estava sentada onde a professora havia me indicado, uma mesa com quatro cadeiras onde ela fazia suas atividades com as outras crianças. Ele sentou-se em uma cadeira à minha frente, a todo momento me olhava rapidamente e esboçava um sorriso, que era imediatamente retribuído por mim. A professora pediu que ele pegasse o dever na mochila e eles começaram a ler o que era pedido, em seguida, ela orientou T em algumas dúvidas. Fiquei sentada observando sua concentração na atividade e os outros meninos, ambos com comprometimentos cognitivos que necessitavam de mais atenção por parte da professora.

Nesse momento me ocorreu um duplo sentimento, se por um lado eu me percebia feliz em ver a autonomia e a concentração de T, por outro, pensava no que ela havia dito: “ele estava ali para ‘apenas’ fazer o dever”. Penso que seria um espaço para que ele pudesse ser apoiado em atividades que pudessem fortalecer suas potencialidades, um momento de fazer ações diferentes das de sala de aula, de seu interesse e habilidades.

Quando acabou, ele me olhou rapidamente e levantou o caderno, me mostrando que havia terminado, neste momento, a professora se dirigiu a ele para verificar o resultado. Corrigiu com alguns itens que ele prontamente refez. Ele se levantou, veio até mim e ficou parado. Perguntei se ele tinha gostado de me encontrar e ele disse que sim. Falei que nosso próximo encontro seria na terça-feira seguinte, ele se dirigiu a um calendário que estava pendurado na parede e me mostrou que dia seria. Me lembrou, mais uma vez, sobre a importância do combinado, como se acorda um compromisso entre as partes. Eu disse que era isso mesmo e ele, mais uma vez, sorriu.

O pai de T apareceu na porta da sala para buscá-lo e a professora chamou para que pegasse suas coisas para ir embora. Me despedi de T, da professora e segui para o primeiro andar em direção ao portão da escola, para ir embora. Quando cheguei perto do portão, este estava trancado com cadeado e tive que aguardar alguém para abrir. Fiquei em pé, parada de frente para a rua e para o portão. De repente senti um toque em minha mão, mais especificamente em meu dedo mindinho. Um toque suave, não era um aperto, apenas um leve encostar, talvez o quanto T suportava o contato físico, porém, o suficiente para me fazer olhar imediatamente por cima do ombro para ver quem estava me tocando daquele modo tão peculiar. Quando olhei, vi T a meu lado, tocando minha mão, rapidamente me olhou de soslaio (inclinação oblíqua; revestrés; de esguelha, de lado, de través, de viés), imediatamente depois olhou para frente, imóvel, estático mas sem soltar meu mindinho, esboçava um leve sorriso. Eu sorri e falei: vamos ter que esperar. Ficamos parados unidos pelos nossos mindinhos. Fiquei extremamente sensibilizada, era como se, pela primeira vez, ele tivesse me autorizado a estar com ele, uma espécie de aceite, acordo feito, e os mindinhos como testemunha.

Acolhimento

Em uma oficina do Caixa e Bacia na Bahia, Camaçari, experimentei o que Levinas chama de cuidado e acolhimento a partir da convocação do outro.

Os profissionais e as famílias estavam em grupo, construindo seus materiais de estimulação para as crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus, conjuntamente. As pessoas falavam umas com as outras, trocavam ferramentas de trabalho e iam dando forma às suas ideias. As oficinas eram sempre um espaço de muito movimento, troca e agitação.

No meio do alvoroço, percebi que em um determinado grupo havia uma criança que parecia "meio perdida", fiquei observando. Era um menino que tinha ido à oficina com a mãe e o irmão, este com Síndrome Congênita do Zika Vírus, ou seja, ele fazia parte do grupo que chamávamos de: as crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus e suas famílias. Sim, sua identidade naquele espaço, até então, era de família, “coadjuvante”. Tudo acontecia ao redor, para e com o irmão dele. No entanto, ele também era uma criança, participando de uma oficina com múltiplas formas de interação: com os materiais coloridos, variados, com os adultos, com a mãe e com o irmão com "deficiência".

A cena me chamou atenção, ao mesmo tempo em que participava, parecia deslocado. Sua ação era tímida, mas seus olhos brilhavam com o fervor do espaço e as possibilidades de participação. Imediatamente me lembrei da letra de uma música: "sabe lá, o que é morrer de sede em frente ao mar". Sim, ele parecia com sede de brincar, de experimentar e de participar. Mas, assim como na letra, o espaço era “salgado”, não matava sua sede. Comecei a pensar em como contornar a situação, a cena me corroía.

Percebi que ele precisava ser acolhido, sentir-se mais que autorizado (isso já havia sido dito), ser "prestigiado", significativo, afinal de contas, seu irmão o era. Em muitas famílias em que um dos filhos tem algum tipo de deficiência, os irmãos sentem-se desassistidos, menos importantes, ajudantes. Não poderia permitir que em um trabalho que se realizava a partir do âmbito da inclusão, da construção coletiva e do cuidado compartilhado uma criança pudesse se sentir excluída e ou "menos pertencente".

Em determinado momento, vi que ele estava sentado no chão, brincando com o irmão, que se encontrava dentro da bacia sendo estimulado pelo grupo com diversos objetos. Foi então que peguei uma bacia e dei para ele. Imediatamente ele a pôs ao lado da do irmão para continuar a brincadeira, ele não foi fazer sua atividade isoladamente, permaneceu ali, em sua parceria. No entanto, sua expressão se modificou, seu sorriso parecia dizer que além de acolhido pela bacia, estava acolhido pelo grupo, pela atividade, pelo dia e, principalmente, por quem ele era. Seu direito de ser criança, de experimentar e de compartilhar com “os seus” suas experiências.

Pertencimento

Para além da estimulação precoce em si, a interação com objetos mostrou-se potente por meio do relato de uma avó em Alagoinhas – BA. A experiência da oficina potencializou sua autonomia, emancipação e, principalmente, o afeto.

Na oficina “Caixa e Bacia” estava presente uma avó com uma neta, por volta de dois anos, na cadeira de rodas. A criança era muito comprometida no aspecto motor. A avó cuidava dela sozinha, pois a mãe havia abandonado a criança ainda bebê, por não aceitar sua condição de bebê com deficiência. Ao final da oficina, a avó, chorando muito, nos disse que a experiência havia feito com que ela se orgulhasse de sua neta pela primeira vez, pois ela tinha visto a criança rolar durante a oficina ao brincar com os objetos criados, movimento que a ela ainda não fazia. Disse que seu sonho era ver sua neta sentada sozinha e que, “agora”, ela acreditava ser possível.

Por intermédio do olhar dos profissionais que estavam “vibrando” com o fato da criança rolar e sustentar a cabeça, ela pôde estabelecer um maior vínculo de afeto e confiança nas possibilidades de desenvolvimento de sua neta. Nesse sentido, a estimulação a partir de objetos criados para esta determinada criança, com a participação da cuidadora/avó (responsável), veio auxiliar não só em seu desenvolvimento neuropsicomotor, como também, reconstruir aspectos afetivos prejudicados na ação do cuidado.

No ano seguinte voltamos para acompanhar os desdobramentos do projeto. A avó quis falar na roda de participantes sobre como a oficina modificou seu engajamento e a percepção da potência de sua neta. A criança estava sentada, com apoio, na cadeira ao seu lado, não mais na cadeira de rodas, mostrando o quanto a criança obteve ganhos com a apropriação da metodologia. No relato a avó disse: “Os brinquedos ela utiliza. Teve também o emborrachado, que colocaram com amarelo e preto. É uma faixa, que ela visualizou muito essas cores. Coloco a faixa na parede ...e foi assim que ela firmou o pescoço, ela não tinha firmeza. A fisioterapeuta chama e ela vira para o lado certinho. E trabalhando assim ela conseguiu virar o pescoço.

A criança estava mais desenvolvida no aspecto do controle motor, a avó interessada em se informar mais e os profissionais que atendem à criança, engajados no tratamento. Estabeleceu-se uma relação de apoio e interlocução entre a rede de atendimento e essa família.

Experiências como essa reforçam o entendimento da importância de estratégias, como as desenvolvidas pelo Caixa e Bacia, na ideia de cuidado compartilhado, centrado na família. Ficou evidente que a participação ativa da avó e dos terapeutas na construção de objetos (brinquedos, recursos de estimulação) teve lugar não somente no desenvolvimento da criança, mas na afetividade, na relação dos afetos, na construção de uma rede de apoio. Para a avó, perceber que ela participou deste processo, que a neta, quando estimulada em suas potências, respondia de modo a melhorar sua autonomia e sua qualidade de vida, fez com que pudesse se orgulhar da neta em sua conquista, como de si, em sua crença de que era possível.