TESSITURAS
A vida acontece nos tecer de verbos comuns.
Daniela Marçal
Etimologicamente, “tecer” vem do latim tecere, que significa justamente: tramar fios, textos, palavras, ideias.
Este trabalho é uma convocação à (re)construção conjunta do caminho que me trouxe até aqui. A linha que nos une (escritor/leitor) a partir daqui, ou talvez antes, é a do diálogo. Linha forte que tece trilhas, tramas, redes e histórias. Que une as partes e deixa sua marca mostrando caminhos possíveis para se construir uma tessitura. Costura que transborda e revela o avesso. Alinhava um lugar que não é o seu e nem o meu, o lugar do encontro.
A linha que o diálogo une uns aos outros é carregada de verbos e de ação, "A palavra como ato". O fio que tece a ação, acontece na alternância dos sujeitos do discurso, ora para um lado, ora para o outro, construindo ponto a ponto um bordado comum e, ao mesmo tempo, único e singular. Ao dialogar por costuras convido o leitor a compartilhar experiências e histórias, ora leitor(a) e ora contador(a), propondo um caminho comum.
A primeira costura metodológica é de contexto, enquadramento em que o caminho foi traçado. Com isso, apresento as parcerias: pessoas com deficiência, familiares, minha orientadora, pesquisadores, autores, amigos, companheiros de ação e costura. Portanto, uma história cerzida onde a vida acontece, nos tecer de verbos comuns.
Ao colocar a linha na agulha, a primeira tessitura é com a ideia da linguagem como a base da consciência, pois, é por meio dela que entramos em contato e compreendemos o mundo, tornando-nos seres sociais [(Círculo de Bakhtin, 1929:1981)]. A polissemia da linguagem participa na criação dos processos subjetivos que estabelecem o conjunto das significações atribuídas pela cultura na qual o sujeito inscreve-se. Assim, sociedade e indivíduos estabelecem relações polifônicas, onde os signos são construídos através das vozes presentes e atuantes no contexto social. Nos (uso pronome na primeira pessoa do plural pois o contexto é plural) apoiamos, também, na compreensão de que a significação se dá na interação do sujeito com o objeto circunscritos em um determinado “lugar/tempo como ação única e singular”, portanto não se dá a priori, e sim, no vir a ser (FARBIARZ, 2014).
O enquadre apresentado tem como base experiências de interação com crianças com deficiência, múltiplos modos de interação, nas áreas da educação e saúde:
1) a primeira experiência é resultado da pesquisa de doutorado defendida no ano de 2017 na Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio, no Departamento de Artes e Design, tese denominada “Design participativo e princípios inclusivos: Múltiplos modos de mediações na relação de sujeitos com autismo”. A pesquisa investigou metodologias de Design colaborativos que sustentam projetos que resultem na promoção do desenvolvimento das interações sociais e padrões de comunicação dos sujeitos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O estudo sugeriu procedimentos para auxiliar educadores, e também designers, no desenvolvimento de projetos e no manejo de sistemas de informação e de objetos de mediação em ambientes de aprendizagem. Como resultado, foi criado, também, um objeto de mediação, com fins de uso em espaços de ensino aprendizagem, com uma criança com TEA;
2) a segunda, um trabalho realizado em decorrência do que foi proposto como resultado da referida pesquisa de doutorado. Denominado "Caixa e Bacia", o projeto foi concebido junto ao coletivo Elaborando, Setor de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Instituto Fernandes Figueira - onde o projeto foi validado - e por Flávia Oliveira (dona da enfim enfant ), desenvolvido por muitas mãos, como uma das ações do Movimento Zika. Posteriormente, no ano de 2018, quando me tornei membro da equipe EBBS - Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis/IFF/FIOCRUZ, foi estruturado como metodologia de trabalho de design colaborativo. O trabalho objetivou a qualificação de profissionais de saúde, educação, assistência social e famílias na abordagem do desenvolvimento de objetos sensoriais de estimulação para crianças com atraso no desenvolvimento decorrentes da Síndrome Congênita do Vírus Zika. A metodologia foi aplicada em oficinas, nas ações pactuadas no âmbito da Estratégia para fortalecimento das ações de cuidado às crianças com Síndrome Congênita do Zika Virus (SCZV) e STORCH em parceria da EBBS/IFF/FIOCRUZ com o Ministério da Saúde.
A tessitura também se deu no diálogo com/entre as áreas do design, educação e saúde, baseadas em abordagens do design participativo, que constitui-se num gênero de design social que envolve, na maior parte das vezes, grupos interdisciplinares compostos por profissionais de áreas diversas e pessoas ou grupos sociais com quem se projeta junto. Abordagens que encontram eco, também, no entendimento de design como “...proposta de ação capaz de levar à realização de um produto que atenda a uma necessidade humana.”, e ainda no âmbito da sua capacidade de dialogar com outras áreas como “...uma tecnologia, que utiliza, na sua prática, conhecimento de outros campos de saber o que explica sua vocação interdisciplinar.” (COUTO, 1997).
As experiências tiveram como foco, para além de seus objetivos de trabalho, potencializar as possibilidades de significações a partir da interação sujeito/objeto/contexto.
Na primeira experiência, interação com criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), em situação de ensino aprendizagem, pudemos estabelecer que os objetos propiciaram não só a interação da criança com o conteúdo e as informações presentes nas situações observadas, mas também reforçaram a ideia de objetos como mediadores, favorecendo a interação entre sujeitos. No caso específico, na comunicação, na produção verbal e na construção de sentidos.
A partir da observação da interação do menino com as pessoas, objetos e sistemas de informação, foram elaboradas duas categorias com base nas seguintes concepções:
a) barreiras – dificultam o acesso, podem ser de ordem física, comunicacional, social, atitudinal e emocional, e surgem entre pessoas, entre pessoas e estruturas físicas ou entre pessoas e conteúdos informacionais. Portanto, compreendemos que barreiras restringem as possibilidades das pessoas em suas interações e, assim, interferem negativamente na construção de significados e conhecimentos;
b) potência – no campo da física, potência é a capacidade de realizar um trabalho, a prontidão com a qual certa quantidade de energia é transformada. Já na filosofia, para Aristóteles (1049), potência seria a capacidade de uma coisa transformar-se em outra, devido à necessidade, ou até mesmo por conta da impossibilidade de permanecer sempre constante. Em Nietzsche (1883; 1885) o ser existe necessariamente em potência e ato, e para Spinoza (1992) tal conceito é a capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo. Nesta pesquisa tomamos por potência aquilo que nos permite uma ação de impulsionamento: mudar do estado passivo para o ativo, o que garante autonomia e ação por parte do sujeito.
Projetar sistemas de informação e objetos para diminuir as barreiras entre o sujeito e o conhecimento (sujeito/conhecimento/construção de sentido), nos permitiu entender a importância de olhar para as potências e as possibilidades de ação do sujeito. Pudemos constatar que as demandas sensoriais de pessoas com TEA podem tomar forma de barreiras ou potências dependendo de como as informações estão projetadas e são apresentadas. A partir de uma observação atenta, de troca e colaboração entre os sujeitos/espaços/objetos/sistemas de informação, é possível a concepção de projetos que proporcionem múltiplos modos de interação. Deste modo, a criança aciona os seus canais sensoriais preferenciais, garantindo que a interação aconteça onde ela é potente.
No caso da criança com TEA, após alguns encontros de observação e interações, foi desenvolvido um objeto (imagem abaixo - dodecaedro) para que fosse trabalhado a partir de suas potencialidades visuais e temáticas (assuntos de história e geografia) suas dificuldades com questões relacionadas a fração, divisão e partes.
As conclusões nos levaram a inferir que a interação mediada por objetos sustentou a construção de sentidos, a relação com o(s) outro(s), produção de discurso e a autonomia sobre suas ações. Outro aspecto a ser reforçado foi a ideia de espaço (formal e informal de educação) como forma e conteúdo em permanente inter-relação, lugar que pode, e deve, ser transformado na relação homem/meio, espaço como devir. Para Santos (2006), “A ação é o próprio homem”. O espaço revela a força da ação do homem sobre o meio e como essa relação constitui o próprio meio e o homem.
Tal entendimento reforça a noção de espaço como campo relacional com os sistemas ali contidos, fazendo parte da construção de identidade e de sentidos dos sujeitos em atividade comunicacional, mediado por símbolos e possibilidades de partilha de significados. Sendo assim, enquanto lugar de construção de afeto e de sentido, o meio, os sistemas de informação e objetos de mediação participam, também, de processos cognitivos ao promoverem transformações estruturais no conviver e se apresentarem como impulso à criação de novos modos de ser, que possibilitam a invenção de si e do mundo (Kastrup, 2007).
Na segunda experiência, interação com profissionais de saúde e famílias de crianças com atraso no desenvolvimento em decorrência da Síndrome Congênita do Vírus Zika, as abordagens de cocriação do design participativo foram percebidas como valor de conhecimento no processo de construção de objetos sensoriais para estimulação e, também, apontadas como fator de engajamento na aproximação das famílias com os profissionais de saúde.
Alguns profissionais da área de saúde sinalizaram que a experiência de construção dos materiais de estimulação através da observação das crianças em interação, mostrou-se uma potente ferramenta para enriquecimento das práticas que apoiem o desenvolvimento de um plano de estimulação para as crianças. Por parte das famílias os relatos demonstraram a importância da experiência vivida em conjunto, partilhada com a comunidade dos atores de saúde (crianças, suas famílias e terapeutas). As narrativas apontaram, também, a relevância de serem ouvidas em suas expertises no cuidado diário das crianças com a SCVZ, reforçando a importância da multiplicidade das vozes em diálogo na construção dos objetos, que para além de seu objetivo de estimular as crianças com deficiência, mostraram-se significativos na criação de vínculos sociais.
O “Caixa e Bacia” foi fundamentado em uma abordagem de trabalho que teve como escopo a construção de recursos de estimulação para crianças de 0 a 3 anos com a Síndrome Congênita do Vírus Zika. O conceito do projeto partiu da hipótese de que em qualquer lugar é possível obter caixas, bacias e tecidos, ou seja, materiais de baixo custo que possam ser transformados, através de intervenções de simples execução, em objetos de mediação para estimulação. A concepção de projeto teve como um dos critérios o fato do vírus ter atingido, em sua maioria, mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade social, em especial no nordeste do Brasil.
O objetivo inicial foi proporcionar autonomia às famílias das crianças acometidas pela Síndrome Congênita do Vírus Zika. No entanto, no decorrer do trabalho percebeu-se sua contribuição do fazer coletivamente, famílias, profissionais e crianças, para a prática de terapeutas, outros profissionais da saúde, assim como profissionais da educação. Outros objetivos do projeto: a) realizar a transferência da tecnologia social de formação de famílias para equipes da atenção básica; b) estimular o vínculo entre as famílias e terapeutas através do engajamento das mesmas no tratamento e desenvolvimento das crianças com SCZV.
A partir do entendimento da relação entre potência/barreira e sensorialidade, foram estabelecidas três etapas, colocadas aqui em partes a título de organização de informação mas compreendidas na ação como processo (imagem abaixo).
Através da construção de objetos de estimulação de baixo custo pudemos, segundo relato dos profissionais e familiares que participaram das oficinas de “Caixa e Bacia”, sensibilizar famílias, profissionais das áreas da saúde e educação para a viabilidade da produção de recursos inclusivos. Foi possível explorar a necessidade da intencionalidade na construção do objeto/projeto, principalmente em termos de estimulação. É possível estimular com qualquer brinquedo, objeto e/ou mesmo a voz, no entanto o que se mostrou central foi a possibilidade de pensar a partir da particularidade de cada criança. O que se pretendia era refletir sobre os processos e os procedimentos, no sentido de observar quais os canais preferenciais de interação da criança, quais materiais estavam disponíveis e que materiais atendem às demandas singulares das crianças.
As experiências apresentadas trouxeram a ampliação das possibilidades de trabalhos que se desenvolvam de modo interdisciplinar, com foco no cuidado compartilhado, abrindo espaços de troca, conhecimento e protagonismo. Compreendemos, acima de tudo, que com a participação efetiva das famílias e das crianças na construção dos projetos e objetos de estimulação, de modo a gerar autonomia, criar possibilidade de comprometimento e apoio mútuos entre os profissionais e as famílias auxiliam o alcance de um objetivo comum, o desenvolvimento integral das crianças com deficiência e seu bem estar.
No que tange ao design, a abordagem teve como princípio as concepções do Design que se apoiam em práticas projetuais que propõem o projetar com a colaboração ativa dos sujeitos envolvidos na ação (Ripper e Farbiarz, 2004). Tem como princípio a observação do sujeito em interação, em seu contexto, com suas singularidades e a criação de espaços que permitam participarem como coautores do projeto.
As costuras revelaram que práticas participativas proporcionaram espaços para a mudança do olhar para as possibilidades de autonomia das pessoas com deficiência. O eixo da abordagem projetual está nas possibilidades e potencialidades das crianças, do entendimento dos muitos modos de ser e perceber o mundo e a si, pois somos sujeitos de experiências e elaborações únicas que são partilhadas na ação.
Nessa perspectiva, pontuamos, e pontilhamos, que ao estabelecermos possibilidades de diálogos com o outro na esfera projetual, devemos ter como princípio considerar as subjetividades que abarcam e que estão para além da deficiência, ou seja, na potência, assegurando as diversas formas de interação das pessoas. Desenhamos e costuramos com/para uma sociedade plural e múltipla. Esses enunciados ratificam o engajamento do design que, comprometido com metodologias participativas e inclusivas, assume a atitude projetual e responsável do delinear “junto com” e não “para”.
O design que se propõe inclusivo e que opera no sentido de construir uma sociedade equânime, não é somente orientado por leis, normas ou princípios de acessibilidade, está para além, reside no compromisso de perceber a si e ao outro como ser social. Práticas em que o foco está em projetar onde caiba o outro como legítimo na convivência, situa-se no imbricamento entre ética e estética, posto que a ética encontra-se no âmbito da práxis vivida em sociedade.
Nosso ponto de reforço está na percepção de que designers, ao participarem de modo ativo e cooperativo em situações, impactam transformações na sociedade, pois, para além de desenvolverem expertises técnicas de solução de problemas, concebem metodologias processuais de construção de sentidos que apoiam as interações sociais. O ponto de arremate de nossa tessitura é a aproximação de saberes das áreas de design, educação e saúde (entendendo saúde como bem estar social) no desenvolvimento de metodologias e princípios que fortaleçam as singularidades de crianças com deficiência, com vistas à diminuição das barreiras comunicacionais e à consolidação de práticas socialmente inclusivas e equânimes.