TANGÍVEIS

Foto da oficina Caixa e Bacia


O apanhador de desperdícios

"Queria que a minha voz tivesse um formato de canto."

Manoel de Barros

Tangíveis e intangíveis. Seria possível uma interação dicotômica desses conceitos? Como pensar materiais e objetos como inexoráveis às ideias e às experiências do intangível? Experiências se dão a partir do corpo em interação com o meio e compreendidas através das sensações. A percepção ocorre na relação entre consciência e mundo, portanto, é também contexto histórico, tudo que percebemos com o corpo, por e com ele, somos atravessados pelas sensações e experiências vividas, nos âmbitos individual e social. Nas palavras de Merleau-Ponty (1983), "O corpo é nosso meio geral de ter o mundo". Quando as percepções elaboradas pelo corpo necessitam de materialidade, estas ocorrem por intermédio de palavras e/ou por construções concretas. Para que isso aconteça agimos na, e com, a linguagem e, assim, construímos sentidos objetivos e subjetivos concomitantemente. Konder (1988), nos chama a atenção para o fato de que “...as ideias possuem um recinto próprio: a linguagem".

Os conceito que construímos, por meio da percepção, torna-se uma explicação sobre uma experiência vivida, “O processo da fala, compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim”, nos disse Bakthin, (1952). As coisas não existem por si, elas necessitam de intenção, agir sobre, dar sentido(s).

Estas ideias tomaram forma ao retornar às experiências vividas co-construindo objetos sensoriais para estimulação de crianças com deficiências diversas. Em uma das oficinas com pais e crianças "com modos diversos de interação", fazíamos círculos nas caixas de papelão, cada mãe construía uma em conjunto com seu filho. Através de pequenos furos ao redor do círculo passávamos elásticos coloridos, construindo uma espécie de teia (imagem abaixo). O objetivo era que a criança, em contato com o elástico, vivenciasse algum tipo de tensão corporal (sensação). No entanto, vejam só, uma criança com a Síndrome Congênita do Zika Vírus possui a musculatura excessivamente tensa, o que dificulta seu movimento (sua musculatura é hipertônica), necessita de relaxamento para que haja possibilidade de um movimento mais coordenado e harmônico. Já uma criança com Síndrome de Down, tem a questão oposta, possui a musculatura enfraquecida, com falta de tônus (sua musculatura é hipotônica), necessitando fortalecê-la para ter mais controle e firmeza no movimento. Portanto, o que diferenciou o uso do elástico foi exatamente a tensão: para as crianças com musculatura hipertônica colocamos o elástico frouxo, diminuindo a resistência e, assim, proporcionando a experiência tátil de maior distensão, diminuindo assim, a barreira do movimento; já para criança com musculatura hipotônica, colocamos o elástico de modo tensionado, para que assim ocorresse uma maior resistência, fortalecendo sua musculatura e permitindo maior controle no movimento.

O que compreendemos, a partir da experiência acima citada, é que a vivência com o objeto elástico para uma criança com Síndrome de Down é percebida e experimentada de modo diferente do que para uma criança com Síndrome congênita do Zika Vírus. O objeto, enquanto matéria, é o mesmo, no entanto é capaz de ser o oposto, de acordo com a intenção e/ou experiência de seu uso e interação. Deste modo, neste caso, fica explícito que material e imaterial fazem parte do entendimento do que é um movimento, ele existe em relação a algo ou alguém. Assim como a função do elástico é múltipla, ou seja, quanto mais usos faço, mais experiências são proporcionadas e vividas, são também cambiantes os repertórios para compreensão, concepção e ação do que é, ou pode vir a ser, um elástico: múltiplas possibilidades e usos.

Cabe ressaltar que se a percepção de mundo de uma criança com deficiência perpassa pela experiência de "incompetência", a imagem construída de si irá refletir esses preceitos. É preciso que crianças, com ou sem deficiência, possam experienciar o mundo a partir de suas potências, percepções objetivas e subjetivas, de suas capacidades de agir e interagir. Quanto maior a variedade de modos de ação e interação, de formas de perceber e se expressar oferecidas, mais possibilidades são dadas à criança de encontrar seu modo, único, singular e potente.

Portanto, se a vivência fosse experimentada apenas com uma das experiências, diríamos que o elástico, quando usado com crianças com deficiência, deveria ser usado tensionado ou distensionado, sem levar em conta a singularidade do uso. Ou seja, o que estou querendo dizer é que tudo depende do contexto e da intencionalidade do uso: qual o desejo? Em que circunstância? Para quem e para que servirá esse objeto?


A questão está em como "eu" vivo e me relaciono com a experiência. Para que este processo seja catalisador de potência se faz necessário acesso a múltiplas experiências, contextos e vivências. É preciso construir espaços em que se possa viver o estranhamento da diferença, da pergunta e, assim, colocar em cheque conceitos preestabelecidos. Se o mundo for visto e vivido apenas de verdades absolutas e imutáveis, repetiremos afirmações tolas como: um elástico é usado assim, ou então, esta criança só aprende assim. Conceitos e pré conceitos são construídos por percepções e interações experimentadas e partilhadas por nós, ou seja, uma interpretação ao mesmo tempo singular e comum sobre a experiência vivida por um determinado sujeito no coletivo.

Toda cor, toda forma, todo toque é, antes de tudo, sentido, afetado pelas nossas emoções, na maior parte das vezes, sem racionalidade, sem críticas e sem julgamento, interligadas a outras emoções e entendimentos. O modo como a vivenciamos, sentimos e, também, em que contexto ocorre a experiência, pode gerar sensações agradáveis ou desagradáveis, ruídos ou músicas, percepção de potência ou impotência. Tudo está relacionado à mediação. Assim como a criança conduz o movimento, mostra o caminho, o fazer nos mostra as possibilidades, é na ação que se dá a materialização, seja do verbo, seja do objeto; do tangível e do intangível.